O Projeto
Texto: da equipe
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Justificativa
Embora imbricada em processos complexos, que frequentemente permanecem velados ou latentes no cotidiano, a dimensão política inerente à vida em sociedade vem à tona em termos estéticos ao se apresentar por meio de suas implicações partilhadas no plano sensível. Essa é a posição de Jacques Rancière, para quem a política não pode prescindir de sua dimensão estética, cuja partilha permite superar as ordens preestabelecidas das identidades, das funções e dos lugares, oferecendo-se como potência para subvertê-las e rearranjá-las (RANCIÈRE, 2005). Se, ao longo da história e em suas mais diversas expressões, a arte se coloca não apenas como meio de representação do imaginário urbano, mas também como elemento partícipe da vida nas cidades, imiscuindo-se nas atmosferas ou na aura do meio urbano (BENJAMIN, 2006), não nos parece menos importante a participação de temas relativos à vida urbana e à sociedade no cancioneiro popular brasileiro e, com especial interesse, no samba.
Certos lugares nos fazem lembrar, com frequência, de certas canções. Certas canções, por sua vez, nos remetem a lugares ou situações que vivenciamos, de fato, ou que, por permanecerem tão vivas em nosso imaginário, nos permitem acreditar que as vivemos – nós nos apropriamos delas. Talvez seja essa a condição da boa poesia, que traz ao leitor a sensação ou o desejo de tê-la escrito: copertencente aos versos lidos e sensivelmente partilhados, o leitor se sente coautor (BACHELARD, 1998). A ressonância entre poeta e leitor dada na poesia – ou, mais especificamente, no instante da leitura ou da revelação poética (PAZ, 2012) – não nos parece estranha à identificação que podemos sentir ao ouvir ou cantarolar certa canção. Afora os aspectos rítmicos e melódicos, que constituem pelo menos metade da matéria poética de uma canção, seus versos podem ecoar fundo em nós, causando, para além de uma predileção, do simples gostar ou não, um verdadeiro sentimento de identidade e partilha.
A forma – ritmo, melodia, vocabulário, rimas – e o conteúdo de sambas que abordem temas atinentes à cidade e à sociedade constituem a matéria da qual se nutre este projeto de extensão. Com o intuito de abordar e de favorecer o debate sobre esses temas, propomos a pesquisa, a seleção, o estudo aprofundado e a interpretação conjunta de sambas compostos em diferentes contextos urbanos, por diferentes compositores e em diferentes épocas, enquanto atividades centrais a serem desenvolvidas.
Fundamentação teórica
Em nosso projeto, pretendemos abordar as questões da sociedade e da cidade a partir de sambas que fazem parte do imaginário social brasileiro e mesmo da constituição da identidade nacional. A fundamentação teórica do presente projeto de extensão diz respeito, assim, a questões ligadas à vida nas cidades brasileiras, às disputas e às diversas formas de segregação do espaço urbano que marcam o cotidiano e que são cantadas em sambas de diferentes compositores e sob diversas perspectivas. Mais do que estudar pormenorizadamente os aspectos conceituais da música popular brasileira, visamos refletir criticamente, a partir da música e em sua presença incessante, sobre os problemas sociais urbanos que, por meio dela, são trazidos poeticamente à tona. Se o samba nasceu lá na Bahia [1] ou se é natural do Rio de Janeiro [2] se torna uma questão de pouca (ou nenhuma) relevância quando o compreendemos como o grande poder transformador [3], forjado a partir do cotidiano de pessoas que foram (e continuam sendo) desumanizadas por um sistema perverso.
Desde seu surgimento a partir das reuniões de descendentes de pessoas escravizadas, o ritmo foi marginalizado, duramente perseguido, na esquina, no botequim e no terreiro [4] e mesmo proibido, tanto por sua estética negra como por ser uma cultura da classe trabalhadora. Para essa grande parcela pobre da sociedade, fazer samba não é contar piada [5] é, na realidade, uma forma de expressar seu modo de vida e sua visão de mundo, se tornando uma forma de oração[6].
Considerando que pobre não é um, pobre é mais de cem, muito mais de mil, mais de um milhão [7], podemos ter uma noção das vozes que entoam sambas com os quais se identificam, cantando suas vidas, suas conquistas, suas dificuldades, suas memórias e as esperanças de uma outra realidade.
Os sambas ajudam ainda a problematizar o papel do arquiteto-urbanista na sociedade. A arquitetura e o urbanismo ainda estão muito distantes das demandas populares. Acessar esse serviço como um serviço público é uma demanda antiga de profissionais e movimentos sociais, já que sem planta, não se pode construir [8]. Essa unidade de profissionais com aqueles que demandam o seu trabalho certamente forma o único sujeito coletivo capaz de produzir outra cidade, mais democrática. O projeto aqui apresentado pretende contribuir com essa articulação.
Encontrar esse cotidiano cantado na materialização da sociedade em seu ambiente construído implica reconhecer a dialética entre as experiências na cidade e a música, mais especificamente o samba. Para isso, iremos extrapolar as ideias de Paola Berenstein Jacques (2003) que relaciona a produção do artista plástico Hélio Oiticica com a sua vivência por um período no Morro da Mangueira, no Rio de Janeiro.
O samba, por ser também uma expressão popular periférica, narra - geralmente em primeira pessoa - o ofício daqueles que desde o período colonial construíram a cidade com suas próprias mãos. Produzem, assim não somente uma crítica àquele que é um dos trabalhos que mais mutila trabalhadores, a construção civil, como também uma estética do produtor, como defendem Sérgio Ferro e György Lukács, em contraposição à estética da passividade perceptiva. Segundo ela, praça que nasceu do ideal e braço escravo, é praça do povo [9].
O produtor da cidade, cujo verdadeiro endereço é rua do avesso lá na construção [10], a produz como obra permanente (Lefebvre) . Por isso há recusa a um trabalho idiotizado no canteiros de obras. Se for pra carregar pedra, não adianta, eu não vou lá [11]. Ele quer saber quantas vidas cortadas sustentam palácios?/ Quantas pernas, quantos braços servem de argamassa? [12]. E quer para si o produto do seu trabalho, para deixar de ser como a agulha, que costura e fica nua [13].
Reconhecer essa relação dialética nos leva a desvelar os processos de produção do espaço urbano. Em O Direito à Cidade (2001), Henri Lefebvre descreve a imbricada combinação entre os processos de urbanização e industrialização e nos faz compreender porque o morro não tem vez [14] e também o fato de que muitos não têm onde morar [15].
Esta compreensão global do rebatimento da sociedade no território nos leva a compreender a evolução das políticas habitacionais desde o barracão de zinco [16], procurando a relação entre a modernidade e a moradia que nos é descrita por Lilian Fessler Vaz (2002) e Nabil Bonduki (2004). Conforme esses dois autores, as políticas habitacionais se mostraram ineficientes para darem resposta a questão da habitação: se por um lado a cidade se espraiou e segregou socialmente as pessoas, levando-as a não poderem perder o trem das onze [17] por morarem em periferias longínquas, por outro muitos realizaram processos de resistência, possuindo uma forte opinião [18] para permanecerem em seus locais de moradia.
Mesmo em condições não ideais de habitação e de vida, a memória coletiva e afetiva de seus moradores nos leva a reflexão sobre uma possível cartografia sentimental (ROLNIK, 2011) a partir das músicas que nos levam a uma outra qualificações de lugares marginalizados, que passam a ser locais onde ninguém chora e não há tristeza [19], já que nossos barracos são castelos, em nossa imaginação [20], esses lugares passam a ser reconhecidos por nomes doces de dizer [21]
A produção e o acesso à cultura e ao lazer também são questionados (CERTEAU, 2012) quando um cidadão fica de fora escutando a gargalhada [22] do circo. E mais grave, quando a própria expressão cultural popular, o próprio samba, é capturado pela fidalguia do salão [23], forçando o mesmo cidadão a sambar ao lado sozinho [24].
Para nos auxiliar nessa reflexão, recorremos à fenomenologia de Gaston Bachelard em A Poética do Espaço (1998). O autor nos mostra a relação da criação de imagens de lugares com a própria subjetividade. Assim, fica mais fácil compreender como uma mesa no canto, uma sala e um jardim [25] podem doer tanto. Porém, por vezes a subjetividade é atravessada por questões materiais como raça e gênero. Diferentes vozes e subjetividades operam em uníssono, em certos sambas, em defesa de grupos étnicos ou sociais. Assim ocorre, por exemplo, quando pessoas negras, ao serem impedidas de usarem o “elevador social”, subjetivam esse equipamento como quase um templo [26].
Desse modo, cotejando aspectos subjetivos das canções a serem estudadas e interpretadas a questões de ordem coletiva nelas apresentadas, conduziremos reflexões acerca dos modos pelos quais as cidades brasileiras são produzidas e cotidianamente vivenciadas entre segregações e resistências, entre processos de cerceamento e conquistas sociais. O referencial teórico a ser adotado com vistas a respaldar tais reflexões, e que aqui procuramos apresentar em linhas gerais, será “acionado” à medida que os versos de cada samba (na condição de objeto empírico a ser investigado) colocarem em pauta questões atinentes à habitação, à produção do espaço urbano, aos movimentos de resistência, entre outras. As referências bibliográficas a partir das quais constituímos o referencial teórico do projeto, apresentadas adiante, têm como fio condutor, portanto, as diversas questões sociais atinentes à realidade urbana brasileira.
Metodologia
Pretende-se levantar, selecionar e classificar um conjunto de canções (sambas) que tratem criticamente de temas relativos à cidade e à produção da arquitetura. Os sambas selecionados passarão por um processo de catalogação que inclui a organização em categorias (segregação urbana, habitação, meio ambiente, etc.) e produção de reflexões acadêmicas a respeito de cada uma delas, baseadas nas letras das canções. Essa catalogação será disponibilizada publicamente por meio de um site do projeto (a ser criado). O site-catálogo deve servir de referência para a realização de articulações com artistas (músicos) locais e nacionais, visando à produção de material audiovisual que contenha a execução de músicas e, possivelmente, reflexões e chamadas para o site. A produção de material audiovisual se dará no contexto das medidas de prevenção ao avanço da pandemia do Covid-19: gravações em separado e posterior montagem por meio de ferramentas de edição. A disponibilização de todo esse material nas plataformas digitais servirá de preparação para a realização de uma segunda etapa do projeto (ainda sem cronograma), a ser realizada presencialmente, na qual serão organizadas rodas de samba em diferentes locais da cidade, com a participação de músicos da comunidade externa e amadores membros da comunidade universitária.
Objetivos
O objetivo geral do projeto é iniciar um diálogo com a comunidade sobre questões sociais, principalmente aquelas que se materializam na cidade, através de sambas que em suas letras estimulam essa interação.
Objetivos específicos:
- Iniciar o diálogo com a comunidade em tempos de isolamento social;
- Reconhecer a qualidade que a cultura popular através dos sambas, em específico, tem de aproximar a universidade da comunidade;
- Promover o encontro (mesmo virtualmente) de artistas e amadores que tocam/cantam samba;
- Manter um catálogo com repertório selecionado e comentado permanentemente disponível na internet;
- Incentivar a produção cultural no interior da universidade, assim como fora dela, mas com a sua mediação.
- Utilizar plataformas digitais como bases de diálogo com a comunidade.
Resultados esperados
Visando conferir materialidade às atividades desenvolvidas de acordo com os objetivos descritos, os resultados esperados do projeto Samba, cidade e sociedade serão desenvolvidos em duas linhas ou dois meios distintos, a saber:
1. Elaboração de materiais de disseminação, consulta e referência
- Cadernos com textos de análise crítica das canções estudadas;
- Material audiovisual das rodas de samba e debate;
- Website de divulgação do projeto e compartilhamento das reflexões propostas.
2. Realização de apresentações culturais *
- Audições em espaços livres públicos de sambas selecionados;
- Rodas de samba e debate abertas à comunidade;
- Palestras sobre os diferentes eixos temáticos abordados.
* A serem realizadas após o período de ações de prevenção contra a COVID-19.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O uso dos corpos. Trad. Selvino J. Assman. São Paulo: Boitempo, 2017.
ANDRADE, Julia Pinheiro. Cidade cantada: experiência estética e educação. Dissertação de mestrado. Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2007.
ANDRADE, Mário de. Aspectos da Música Brasileira. São Paulo/Livraria Martins – Brasília/INL, 1997.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de sua possibilidade de reprodução técnica”, in A Modernidade, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.
BÖHME, Gernot. Atmosfere, estasi, messe in scena. L’estetica come teoria generale dela percezione. Milano: Christian MarinottiEdizioni, 2010.
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil: Arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano, 1: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013.
_________________.Sobrevivência dos vaga-lumes. Trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
FERRO, Sergio. O canteiro e o desenho. São Paulo: Projeto, 1979.
JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
LEFÈBVFRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
LUKÁCS, György. Narrar ou descrever?. In. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
PAZ, Octavio. O arco e a lira – O poema. A revelação poética. Poesia e história. (Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht). São Paulo: Cosac Naify, 2012.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2011.
ROZESTRATEN, Artur Simões. Representações: imaginário e tecnologia. São Paulo: Annablume, 2019.
Singer, Paul Israel. Economia política da urbanização. São Paulo: Brasiliense, 1975.
TINHORÃO, José Ramos. Música popular - um tema em debate. São Paulo: Ed. 34, 1997.
_______________. Pequena história da música popular. São Paulo: Circulo do livro, s/d. VASCONCELOS, Gilberto de. Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
VAZ, Lilian Fessler. Modernidade e Moradia: habitação coletiva no Rio de Janeiro nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: 7 letras, 2002.
VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Ed. UFRJ, 1995.
Villaça, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel: FAPESP: Lincoln Institute, 2001.
WISNIK, José Miguel. Algumas questões de música e política no Brasil. In: BOSI, Alfredo. (org.) Cultura brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 1992.
_____________. Anos 70 – música popular. Rio de Janeiro: Europa, 1979/80.
_____________. Música, problema intelectual e político (entrevista). Teoria e Debate. São Paulo, julho/agosto/setembro, 1997.
_____________. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
Notas
[1] Geraldo Filme - Tebas - 1974
[2] Bezerra da Silva - Vida de operário - 1988
[3] Micau e Zorba devagar (comp.) Paulinho da viola (int.) - Que trabalho é esse? - 1982
[4] Tiarajú Pablo D’Andrea - Argamassa - 2007
[5] Nelson Cavaquinho - Sempre Mangueira - 1972
[6] Batatinha - O circo - ano?
[7] Nelson Sargento - Agoniza mas não morre - 1979
[8] Batatinha - Direito de sambar - 1973
[9] Adoniran Barbosa - Abrigo de vagabundos - ANO?
[10] Baden Powell e Vinícius de Moraes – Samba da Benção – 1967
[11] Zé Keti – A voz do morro – 1952
[12] Caetano Veloso - Desde que o samba é samba - 1993
[13] Baden Powell e Vinícius de Moraes – Samba da Benção – 1967
[14] Idem
[15] Zé Keti e Hermínio Bello de Carvalho – Cicatriz - 1965
[16] Tom Jobim e Vinícius de Moraes – O morro não tem vez - 1962
[17] Dorival Caymmi – Eu não tenho onde morar - ANO
[18] Luís Antonio e Oldemar Magalhães – Barracão - 1953
[19] Adoniran Barbosa – Trem das onze - 1964
[20] Zé Keti – Opinião - 1964
[21] Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho – Alvorada - 1968
[22] Arlindo Cruz - Meu Lugar - 2012
[23] Sergio Bittencourt – Naquela mesa - 1978
[24] Jorge Aragão – Identidade - 1992