Coletivo de Ações Poéticas Urbanas
O PÃO
Italo Ribeiro
Por seis anos a Caseiro Alimentos, também chamada apenas de "o pão", esteve presente no cotidiano de uma família, em uma cidade pequena do interior goiano. Após uma difícil decisão, o negócio foi vendido para que novos rumos pudessem ser traçados. Com todo esse processo acontecendo em meio a uma pandemia, a sensação de algo tão presente estar indo embora foi percebida com mais intensidade e motivou a elaboração de um registro desse momento.
O feitiço do pão
Jose Rodolfo Pacheco Thiesen
O brilhante filme de Lucas Ítalo se utiliza de cenas do cotidiano da produção de pães para nos fazer conhecer os interessantes personagens de sua família em uma cidadezinha de Goiás. O pão medeia suas relações, seus afetos, suas histórias. Justo. O pão, na verdade, é capaz de contar a história da humanidade, como já o demonstrou o historiador Heinrich Eduard Jacob. Já o holandês Anton Van Leeuwenhoek, um dos responsáveis pela invenção do microscópio no século XVII, jura ter descoberto o segredo do pão: ele identificou os micro-organismos responsáveis pelo crescimento da massa, aquilo que hoje chamamos de fermento. A descoberta de Leeuwenhoek confrontou o imaginário místico da humanidade em torno da massa misteriosa que crescia sozinha. Sem feitiçaria o pão talvez se tornasse um objeto qualquer, não digno de maior interesse. Ledo engano. O filme de Lucas Ítalo é a prova de que ainda há muita magia por ali.
Tenho a impressão de que há explicação para essa magia, só que ela não deve ser buscada no pão como objeto. Vamos pensar juntos. A produção do pão depende do trigo. O grão de trigo parrudo, esse que vemos hoje nos anúncios de padaria, não nasceu no mato sem ser semeado. Ele é produto de processos sucessivos de seleção de caracteres fenotípicos úteis para o consumo humano, que passaram a ser cultivados, domesticados. Depois, sabe-se lá como, descobriu-se − coincidentemente em uma região do mundo conhecida como "crescente fértil" − que sob determinadas condições, uma massaroca feita com o trigo era capaz de crescer "sozinha". Se um pedaço de massa fosse preservado e misturado com a próxima, o fermento teria sido também domesticado, assim como o trigo. Trigo e fermento são, portanto, produtos de uma seleção consciente.
Após ingerir o pão um sujeito se sente bem alimentado e disposto. Foi com pão no estômago que os egípcios levantaram as pirâmides. E foi pela falta dele por dezoito dias que os operários da construção de Deir el-Medina fizeram a primeira greve da humanidade. Aqui o pão revela outra faceta de seu segredo: uns fazem pães, outros pirâmides, depois trocam. Trocam objetos diversos: pão, pirâmide, mas também tecido, ferramentas, etc. Nessas trocas o pão já foi "equivalente universal", ou seja, moeda.
Poderíamos seguir listando características do pão que nos conduzem ao ponto no qual queremos chegar, mas esses dois nos bastam: 1) ser produzido com materiais que são fruto de uma seleção consciente, e 2) ser passível de troca por outros objetos produzidos socialmente. É simples. A magia do pão não está no pão como objeto, mas sim no fato impressionante de que ele foi feito − feitiço − pelo trabalho. O trabalho, que geralmente vemos como labuta diária extenuante, tem segredos muito mais bem escondidos do que os do pão como objeto. Esses segredos, os do trabalho, não podem ser vistos em microscópio. Eles se escondem em um lugar de acesso muito mais difícil: nas relações. Para entender o poder do trabalho enquanto fermento da humanidade é necessário falar sobre relações, afetos, histórias...
O filme de Lucas Italo é brilhante porque nos faz sentir essa magia. Em quatro minutos somos retirados de nosso cotidiano e transportados para sua padaria. Somos afetivamente afetados, enfeitiçados. O que nos invade é um pedacinho daquelas relações, relações humanas mediadas pelo trabalho. Esse pedacinho, conscientemente selecionado e trabalhado pelas mãos de Lucas Ítalo, é arte, e arte é fermento. O filme é um crescente fértil, que se expande ao entrar em contato com nossas memórias e nos alimenta, para mais um dia.
O PÃO
4'
Direção Lucas Italo Silva Ribeiro
Fotografia Lucas Italo Silva Ribeiro
Montagem Lucas Italo Silva Ribeiro
Narração Maria Luzineide Cabral Silva
Realização Coletivo de Ações Poéticas Urbanas - CAPU
Local das Filmagens Caseiro Alimentos
Santa Rita do Araguaia/GO - 2020